12 de Novembro de 2014 | 18h00 | Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa | sala 5.2
Suportes legais para a salvaguarda do património azulejar. Bases para uma discussão conjunta.
Elsa Garrett Pinho
A salvaguarda do património cultural – móvel, imóvel e integrado ou aplicado – assenta em dois pilares que se encontram plasmados na lei que define as bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural (Lei nº 107/2001, de 8 de setembro): o inventário e a classificação.
O cumprimento e a aplicação destes princípios pertencem ao Estado, através dos organismos competentes na área da Cultura que, no caso específico do património azulejar (integrado em imóvel ou descontextualizado), estão adstritos a uma única entidade: a Direção-Geral do Património Cultural.
Porque o inventário e a classificação são conceitos jurídicos distintos, também da sua aplicação decorrem diferentes ónus sobre os bens culturais, que se definem, por um lado, pelos direitos e deveres dos seus legítimos proprietários e detentores, mas igualmente pela capacidade dada à administração do património cultural para o exercício de efetiva salvaguarda sobre os mesmos, em contexto de alienação (sobretudo para além das fronteiras nacionais), e de conservação física e/ou restauro dos espécimes.
Nos termos legais, o registo patrimonial de inventário (e a correspondente ação de inventariação) visam o “levantamento sistemático, atualizado e tendencialmente exaustivo dos bens culturais existentes com vista à respetiva identificação” (artigo 19º, nº 1). É o princípio básico de que só é possível proteger o que se conhece! Contudo, de uma forma simplificada, diríamos que a mera inclusão do um bem cultural no Inventário Nacional (independentemente de a sua propriedade ser pública ou privada, sendo que neste último caso carece do consentimento prévio dos proprietários) não lhe confere especial grau de proteção, salvo as óbvias vantagens para fins de estudo e de reconhecimento, num eventual contexto de pós-furto, roubo ou vandalismo.
Para que a salvaguarda tenha efeitos mais concretos e imediatos, importa que os bens culturais tenham sido classificados de acordo com um dos três graus previstos na lei em vigor – interesse nacional, interesse público ou interesse municipal – ou seja, que lhes tenha sido reconhecido “um inestimável valor cultural” (Lei nº 107/2001, de 8 de setembro, artigo 16º e ss.). Só após conclusão do respetivo procedimento administrativo, esses bens passarão a constar do registo patrimonial de classificação, que os hierarquiza e lhes atribui diferentes benefícios e ónus.
A classificação do património integrado, e em particular do património azulejar, é uma questão complexa e nem sempre consensual. Olhando retrospetivamente para as classificações realizadas pela administração, facilmente se apreendem critérios distintos, adotados para realidades similares. Exemplificando: painéis de azulejos aplicados, embora beneficiando dos mesmos ónus que recaem sobre os imóveis, foram autonomizados no próprio diploma de classificação – por vezes a par de bens móveis pertencentes ao mesmo “recheio”, como sucede com a Igreja de São Lourenço, em Azeitão (IIP, Decreto n.º 28 536, DG, I Série, n.º 66, de 22-03-1938) – enquanto noutros casos a proteção é atribuída ao complexo arquitetónico e todo o seu património integrado, sem que este seja destacado ou sequer mencionado no diploma de classificação, como sucede com o Palácio da Quinta das Torres, incluindo o tanque adjacente e a Casa de Fresco em forma de tempietto, também em Vila Nogueira de Azeitão (IIP, Decreto 2/96, DR, I Série-B, n.º 56, de 06-03-1996).
Quando integrados em imóveis não classificados mas de algum modo considerados em risco por força de obras de requalificação dos espaços, os painéis de azulejos podiam beneficiar de proteção legal própria, como sucedeu em 1983 com o revestimento azulejar setecentista do prédio sito na Rua da Voz do Operário, 1-A, em Lisboa, que ia ser adaptado a unidade de restauração (DR, III Série, nº 264, de 16-11-1983). Neste, como noutros casos idênticos, os painéis foram inventariados (embora com valor atual de classificação) como se de património cultural móvel se tratasse, por se admitir a possibilidade de destacamento da caixa murária [1].
Como bens móveis, integram igualmente o universo de bens inventariados e classificados alguns painéis de azulejos descontextualizados, a que o Estado entendeu atribuir especial grau de proteção como medida pedagógica, em contexto de exportação definitiva, como sucederia em 1983 com três lotes de painéis de azulejos portugueses do séc. XVIII, montados comercialmente e que uma cidadã alemã pretendia levar para Hamburgo. Reconhecendo que os painéis a exportar eram exemplares relativamente comuns da azulejaria portuguesa de Setecentos, a Administração entendeu impedir a sua saída do território nacional por entender que “a qualidade dos azulejos e sobretudo a intenção comercial que os deturpa, deve constituir motivo de apreensão” para além de ser um mau exemplo.
Note-se, porém, que o número total de registos de painéis azulejares inventariados e classificados autonomamente em data anterior à da Lei nº 107/2001 não excede uma dúzia [2], um número absolutamente irrelevante onde se incluem, para além dos casos supracitados, o revestimento setecentista da Capela contígua ao Hospital da Misericórdia de Alhos Vedros (DR, III Série, n.º 233, de 04/10/1958), uma situação incomum em que a proteção do património integrado antecede em cerca de quatro décadas a classificação do próprio edifício (Decreto 2/96, de 6 de março, DR, I Série B, nº 56, de 06/03/1996).
Integram ainda este escasso universo de azulejos com proteção legal alguns painéis cuja aquisição seria negociada pela Administração para enriquecimento das coleções públicas, e que independentemente do desfecho, acabaram aplicados num novo imóvel. São disso exemplo os painéis oitocentistas ditos de cozinha “de fumeiros”, procedentes de um imóvel sito na Rua da Glória, à Graça, e que hoje adornam as paredes da cafetaria do Museu Nacional do Azulejo.
Mas, impõe-se a pergunta, por que razão são tão escassos os exemplos de painéis azulejares classificados, de que modo a sua inclusão no registo patrimonial de classificação se traduz na salvaguarda efetiva desse património e como se materializa essa proteção?
Nos termos da legislação vigente, apenas a classificação confere aos bens culturais garantias de permanência, de manutenção da integridade física e de acesso real a apoios públicos para a sua conservação ou mesmo aquisição pelo Estado, muito embora a extensão destas garantias não seja idêntica para todos os níveis de classificação.
Se integrados na classificação de um bem imóvel, os painéis de azulejos não podem ser deslocados, o que constitui crime punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias [3]. Se, pelo contrário, a classificação dos azulejos estiver associada ao património móvel, ou seja, se a especial proteção legal tiver sido atribuído a painéis descontextualizados, constitui igualmente infração criminal a sua saída ilícita do território nacional, sendo que apenas para os painéis classificados como de interesse nacional (ditos “tesouros nacionais”) é interdita a sua exportação ou expedição definitivas. Por outras palavras, se não ficar provado o crime de remoção indevida dos azulejos de um imóvel classificado e se aqueles não estiverem classificados como “tesouros nacionais” [4] mas apenas como de interesse público ou municipal, a administração apenas pode vedar a sua saída do País a título de medida provisória (artigo 64º, nº 3, da Lei nº 107/2001, de 8 de setembro) [5].
Por outro lado, a qualificação e o rigor legalmente exigíveis às intervenções de conservação e restauro a realizar em bens culturais classificados ou em vias de classificação [6] apenas se aplica aos azulejos que sejam considerados bens móveis ou aos que, estando integrados em imóveis, tenham sido identificados “como tal no respetivo ato de classificação ou no ato de abertura do procedimento de classificação” (Decreto-Lei nº 140/2009, de 15 de junho, artigo 1º, nº 2, alínea c)). Fica assim excluído deste regime jurídico um vasto e importante património azulejar, como os painéis de azulejos oitocentistas do Paço de São Vicente de Fora, cujos níveis de degradação e de abandono chegaram a determinar a constituição de uma comissão especial de salvaguarda, em meados da década de 1980, quando as instâncias governativas com responsabilidades sobre o património cultural elegeram a azulejaria e a talha como as expressões artísticas nacionais a salvar, porque caraterísticas da identidade coletiva nacional.
Também de um ponto de vista estritamente economicista, a classificação assume particular relevância para a salvaguarda do património azulejar, no sentido em que apenas os bens culturais classificados como de interesse nacional ou de interesse público “em risco de destruição, perda ou deterioração” podem ser candidatos ao Fundo de Salvaguarda, criado ao abrigo de Decreto-Lei nº 138/2009, de 15 de junho com o propósito de financiar medidas de proteção e de valorização do património cultural classificado. Este fundo público autónomo, com um capital inicial de cinco milhões de euros, visa ainda acudir a situações de calamidade que façam perigar o património cultural, dotando ainda a administração de recursos especiais para, em fim de linha, proceder à aquisição, por compra ou expropriação, de bens classificados para as coleções públicas.
Existindo, em Portugal, os mecanismos legais julgados indispensáveis à salvaguarda do património azulejar, por que razão continua a ser tão difícil obter resultados visíveis, consistentes e duradouros? É o que procuraremos debater, com a colaboração de todos, na próxima sessão de novembro.
Lisboa, Setembro de 2014
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[1] Assim sucederia com o conjunto de azulejos de figura avulsa (caricaturas) retirados do 1º andar do edifício “Flor da Campanhã”, que atualmente são propriedade da Câmara Municipal do Porto.
[2] A partir de 2006, por força do Decreto n.º 19/2006, de 18 de julho, DR, 1ª Série, nº 137, de 18/07/2006, o universo de painéis azulejares com proteção legal seria ampliado com a classificação como Bens de Interesse Nacional (ditos “tesouros nacionais”) de onze novos espécimes incorporados em acervos dos museus nacionais diretamente tutelados pela Cultura.
[3] Artigo 101º da lei de bases do património cultural.
[4] Recordamos que até à presente data existem apenas onze registos azulejares aos quais foi atribuído o nível máximo de proteção jurídica e que este se encontram incorporados em acervos museológicos.
[5] Se até à atualidade os azulejos não têm constituído uma tipologia particularmente procurada ou relevante no mercado internacional de antiguidades, nos últimos anos tem-se verificado uma crescente apetência por este tipo de património, que tem como destinos privilegiados os mercados brasileiro e norte-americano.
[6] Neste particular, a lei não distingue os três graus de classificação, aplicando-se o mesmo princípio aos bens classificados como de interesse nacional, de interesse público ou de interesse nacional.
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SAFEGUARD
November 12, 2014 | 18h00 | Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa | room 5.2
Legal support for the safeguard of the azulejo’s heritage. Bases for a discussion. (Abstract)
Elsa Garrett Pinho
The safeguarding of Portuguese cultural heritage – mobile, immobile and integrated or applied – is based on two pillars: the inventory and classification. The compliance and application of these principles belongs to the State that, in the specific case of the azulejo heritage (integrated in a building or decontextualized), are assigned to a single entity: the Direção-Geral do Património Cultural.
To acquire the immediate and concrete safeguarding effects concerning cultural heritage, it has to be classified according to one of the three grades prescribed in the law – national interest, public interest or municipal interest – meaning, that their “inestimable cultural value” has been recognized. Looking retrospectively to the classifications made by the administration, we can easily perceive the distinct criteria adopted for similar realities. For example: applied panels of azulejo, though benefiting from the same onus that affect the buildings, were made autonomous in the classification diploma itself; while in other cases the protection is attributed to the whole architectural complex and its integrated heritage, without it being highlighted or even mentioned in the classification diploma.
On the other hand, when they are integrated in the classification of a imovable heritage, the panels of azulejo cannot be displaced, which constitutes a crime punishable by imprisonment or fine. If, in contrast, the classification of azulejos is associated with the movable heritage, i.e., if the special legal protection has been assigned to decontextualized panels, their unlawful departure from national territory also constitutes a criminal offense. Wherein only for the panels classified as of national interest (the so called “national treasures”) is forbidden its export or final expedition.
Existing, in Portugal, the legal ways judged indispensable to safeguard the azulejo heritage, why is it still so difficult to get visible results, consistent and lasting? That’s what we will try to discuss with the cooperation of all, in the AzLab next session.